sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Moore, certeiro

Por Manuel Cuesta Morúa*



Em um artigo no jornal Granma, órgão oficial do Partido Comunista de Cuba, edição de nove de dezembro de 2009, há uma tentativa declarada de desqualificar Carlos Moore, destacado militante antirracista cubano, professor e pesquisador, com uma ampla obra sobre temas raciais que trata do assunto do racismo tanto em Cuba, como em outras partes do mundo. E isso porque personalidades afro-brasileiras, afro-caribenhas e afro-norteamericanas, separadamente, se manifestaram a favor dos ativistas anti-racistas cubanos, naquilo que poderíamos chamar, com toda a propriedade e com um sentido hemisférico, de A Declaração Afro-americana em Favor dos Direitos Civis em Cuba.

Carlos Moore profere conferências na América Latina, Estados Unidos e África , e é uma importante figura reconhecida em diversos setores acadêmicos de grande magnitude e densidade cultural e intelectual. Trata-se de um homem de esquerda que soube mover-se com determinação, finura e delicadeza no emaranhado cenário da luta pelos direitos civis, pelo respeito das minorias, pela identidade e reconhecimento raciais, sem cair na armadilha do dinheiro e no tradicional jogo de interesses de Washington.

É de um homem como esse que o Granma fala mal; e faz isso muito mal! E por que o ataca? Porque o compatriota Moore acaba de romper, quase simultaneamente, o monopólio que o governo cubano mantinha mais ou menos intacto, até o dia primeiro de dezembro de 2009, sobre os três pilares fundamentais das Américas: os afro-brasileiros, os afro-caribenhos e os afro-norteamericanos. Até essa data, podíamos dizer que estes importantes setores tinham uma visão limitada e uma imagem ideal de Cuba, como certa Ilha de Tule, com uma obra social inigualável destinada, primorosamente, aos negros e mestiços do país.

A ruptura deste monopólio desnuda o rei e o deixa também sem guarda-roupa.

E as razões se explicam da seguinte maneira: poderíamos dizer que todos esses setores são anti-sistema, entendendo como sistema as pautas hegemônicas sobre as quais se baseia o modelo cultural de dominação nas Américas, e da qual o governo cubano faz parte, reconheça-o ou não. Esses setores não podem tampouco ser acusados de trabalhar a favor dos serviços de inteligência ocidentais, nem podem ser incriminados, por acaso, nas manobras reais ou o suposto do eixo Miami-Washington.

Portanto, a teoria do cisne negro ganha uma confirmação interessante neste caso específico. Se o caráter previsível daquelas críticas feitas ao governo cubano lhe permitia armar uma defesa geopolítica certamente eficaz para vários assuntos, sempre culpando o “imperialismo” por todos os seus males e adversidades, tudo isso desabou, confirmando que todos os cisnes são brancos. Com efeito, as declarações emitidas pelos afro-americanos, no sentido hemisférico do termo, vêm surpreender as autoridades cubanas, e incomodá-los, confirmando a “descoberta australiana” de que existem também cisnes negros capazes de nos surpreender.

Pois não é a mesma coisa ser acusado de violar, de maneira genérica e abstrata, os direitos humanos, do que ser acusado de racismo. Tanto Bush quanto os chineses podem ser enquadrados no primeiro caso; mas onde colocar Bush na segunda instância?

Estas declarações acabam de conferir um tom de maior complexidade a todo o imaginário global construído ao redor de Cuba. Não apenas somos um país falido, desigual, improdutivo, mal educado e bastante violento, mas - na visão de setores importantes da opinião pública mundial -, também racista. O que equivale dizer que completamos finalmente o essencial ciclo de normalização que nos faz ingressar no concerto geral das nações, o que nos era necessário para enfocar e assumir, de maneira madura, aquelas transformações de que o país necessita. Precisamos de uma foto que exiba todos os nossos traços, sem retoques de Photoshop, para nos ajudar a ter uma percepção melhor do que realmente somos.

Segundo o Granma, Moore é o arquiteto disso tudo; e, para se opor ao arquiteto, faz alguns movimentos erráticos.

Em primeiro lugar, diz que Carlos Moore é de “origem cubana”. O que é verdade, mas é uma verdade que se estende a todos os cubanos. Dessa maneira, com o intuito de transformar em ataque político uma classificação empregada pelos departamentos de imigração do Primeiro Mundo, o Granma reproduz um conceito frequentemente utilizado por setores racistas para macular e excluir todos aqueles culpados de serem supostamente “impuros” em algo. O Granma tende a utilizar pejorativamente esta designação cada vez que tenta atacar seus adversários cubanos que residem no exterior, sem perceber que com isto reafirma um estereótipo racista. Uma mordida crônica na própria cauda, revelando, assim, desespero e falta de controle.

Segundo, o Granma afirma que Moore “se apresenta como ‘especialista’ em assuntos raciais”, o que poderia ser contestado dizendo, do mesmo modo, que o Granma se apresenta como um jornal. É o tipo de crítica que emana dos quadrinhos cubanos de Elpidio Valdés, em que os espanhóis do século XIX são apresentados como se fossem soldados. Trata-se de uma crítica fraca, cuja intenção é denunciar uma impostura, mas que, no caso de Moore, resulta em uma ofensa àquelas numerosas universidades e editoras no mundo que acolhem suas conferências e publicam seus livros.

Terceiro, o Granma defende a idéia de que Moore “conseguira ludibriar um respeitável ativista do movimento de defesa da população negra brasileira”, cujo nome - não sei por que razão o Granma não menciona - é Abdias Nascimento. E aqui, o Granma comete um erro maiúsculo, ao se mostrar incapaz de captar a essência e a profundidade do debate racial nas Américas, que gira em torno da auto-estima. Esse é o pilar específico em torno do qual se agitam os movimentos de emancipação negra e que os fazem reagir a qualquer tentativa de manipulação. De modo que, para estes, a precaução e a desconfiança frente às possíveis armações “do outro lado”, são a primeira reação, quase instintiva, por parte de qualquer negro auto-assumido deste continente. Dessa maneira, o Granma consegue ofender Abdias Nascimento e, por extensão, ofender também os afro-caribenhos e afro-norteamericanos. Acho que o jornal incorreu nesse erro mais por ignorância do que por intenção.

Quarto, o órgão oficial do Partido Comunista repete seus ataques habituais contra os dissidentes, mas desta vez deve apresentar as provas que sustentem suas alegações. Alegar que Darsi Ferrer, que neste caso é o objeto da solidariedade expressa em todas as declarações (mas não de maneira restritiva), é “um dos beneficiários dos fundos da política anticubana das diferentes administrações norte-americanas”, somente pode ser considerado um expediente retórico típico do jornalismo militante, ou um despropósito com motivações políticas.

O Granma deveria, antes de tudo, oferecer provas concretas que sustentem tal acusação e, além disso, visitar o domicílio do Dr. Ferrer e verificar suas precárias condições de vida e sua casa caindo aos pedaços. A propósito, este argumento dos fundos norte-americanos deveria ser utilizado com extremo cuidado pelas autoridades cubanas, uma vez que a quantidade de projetos, tanto institucionais quanto pessoais de todo tipo, financiados em Cuba pela USAID ou por fundações americanas, enche uma grande lista pública. Mas, não se sabe por que razão, esta lista nunca foi publicada.

É claro que na terra do racismo cordial, sutil e astucioso, Ferrer não foi preso por ser negro. A coisa não é tão aberta assim em Cuba, não. O problema é que sua condição racial agrava sua situação, simplesmente porque as autoridades não concebem que um negro saia protestando por aí. É jogada na cara dele sua “ingratidão”, e eu mesmo tenho sido testemunha de como Darsi foi desrespeitado diretamente com uma das frases mais humilhantes que se pode ouvir: “parece mentira que você seja negro”. Uma frase como essa tem um grande peso na comunidade, nas prisões, nos testemunhos, nos julgamentos e nas sentenças judiciais. Não se pode explicar de outro modo o triste caso de Pánfilo, ou a condenação de Juan Carlos Robinson, espécie de “ex-faz tudo” do governo, culpado por um delito muito extravagante em Cuba, como o tráfico de influências e tantas outras coisas que não menciono por pudor, generosidade e respeito à memória. É assim que as coisas funcionam em Cuba.

Em quinto lugar – e aqui surge o caso típico de uso do direito de opinião como recurso jornalístico para mascarar o objeto do debate - não entendo como o Granma usa um argumento que, neste caso, acaba favorecendo Moore. Pois, utilizar o comentário de Leroi Jones, homem de prestígio, para desqualificar Moore, é como querer usar a liberdade de expressão para desqualificar a própria liberdade de expressão.

No exercício de seu pleno direito de expressão, Jones assegura que Moore vem realizando uma “provocação perversa”, e o Granma reconhece, por meio de Jones, que Moore vem falando sistematicamente sobre o tema racial desde a década de 1960. Ora, o que isso significa é que nosso compatriota teve a visão de enxergar o problema desde o início, e paciência suficiente para esperar que as mais legítimas vozes dos Estados Unidos decidissem falar da reprodução perversa do racismo em Cuba, um problema bastante evidente. O Granma deveria ser mais cuidadoso e compreender que se deve usar as palavras com cautela, pois elas proporcionam metáforas excelentes para qualificar mais uma situação do que um homem, inocentando-o.

Em sexto lugar, o Granma tenta explorar o tema da retratação de uma importante ativista que em princípio havia assinado a declaração. É impressionante como o jornal não se dá conta de que retratar-se é confirmar. Apenas no Direito a retratação tem valor, não na Psicologia. Este caso revela tanto o dispositivo de suspeita descrito mais acima, quanto as dúvidas que se podem ter na consciência. Também revela, e nada mais, quão profundamente a propaganda do governo penetrou nos setores afro-norteamericanos. Retirar seu nome “porque (a declaração) está sendo manipulada com o fim de legitimar o importante projeto social que se realiza neste país”, não nega a validade da denúncia; apenas alimenta, entre outras coisas, um paradoxo mais ideológico que real: o de um projeto social que convive com o racismo.

Sétimo e, finalmente, o órgão oficial do partido tenta, todavia, convencer-nos com a velha e desgastada prática do turismo revolucionário. É uma legião de visitantes estrangeiros que vêm a Cuba com o fim de confirmar in situ aquilo que já sabiam in petto, a uma boa distância. Lembro-me que quando adolescente via chilenos e uruguaios que chegavam a Cuba e se dirigiam em fila indiana ao acampamento Julio Antonio Mella, àquela altura localizado na zona de Caimito, em Havana. Vinham com o propósito de exaltar os grandes avanços de uma Cuba engajada na trilha da esquerda. Muitos nunca mais retornaram e outros, que chegaram exilados das ditaduras da América do Sul, seguiram viagem apressados em direção à Suécia ou a algum outro destino europeu.

Deve-se observar, no entanto, que o verdadeiro sucesso do turismo revolucionário cubano deu-se não tanto na Europa ou na América Latina, mas sim nos Estados Unidos. Ainda hoje alguns norte-americanos, contra todas as doutrinas e várias evidências, continuam se referindo a algo que denominam de projeto socialista, que caminha para a perfeição. Não sei se devo rir ou chorar quando escuto tais absurdos. Continuar afirmando que em Cuba existiu socialismo, é continuar julgando os projetos e as pessoas pelo que elas dizem ou disseram de si mesmas: uma operação intelectual contra a qual Karl Marx nos prevenia.

É mais próximo da realidade dizer que em Cuba há determinados programas a favor das maiorias sociais; entretanto, um modelo jesuíta como o cubano, em que os cidadãos têm que pedir autorização ao Estado para sair ou abandonar a Missão, não tem nada em comum com o socialismo, que é um projeto que exala modernidade e liberdade. É impressionante como alguns afro-norteamericanos, embora sensibilizados pelo seu próprio sofrimento e vivência cultural, o que os faz aptos a captar as sutilezas que se escondem por trás das máscaras das palavras, — sutilezas que o idioma inglês rejeita por sua própria estrutura — não sejam capazes de reconhecer a marginalidade em meio ao “projeto socialista”. Isto para mim é uma perplexidade, da qual não reclamo, contudo, uma vez que todo cidadão do mundo tem o direito de fazer suas próprias escolhas e de colocar uma venda quando lhe convém.

Mas a coisa se torna mais complicada quando o exercício dessa opção lhes confere mais direitos que a visão dos próprios cubanos em relação a seus problemas. E isto é muito comum entre os radicais de esquerda, que agem realmente como estrangeiros, não se interessando senão pela banalidade de se retratar ao lado de personagens “garciamarquianos”. E, todos, podemos optar por apoiar, criticar ou acompanhar; mas o que o Granma não deveria fazer, para garantir plena coerência, é sugerir aos cubanos que, em assuntos de Cuba, é mais importante a voz de um estrangeiro do que a de um cubano.

E tampouco pode o Granma pressupor que se um estrangeiro conversa com um grupo de cubanos in situ, sabe mais de Cuba do que qualquer cubano, residente ou não na ilha. E muito menos pode o Granma pensar que o turismo revolucionário tem alguma eficácia midiática em tempos de Google Earth, memórias flash, turismo comunitário e internet, pois isso pode até significar uma subestimação do vizinho mais próximo...

Moore foi certeiro. Mas não porque os cubanos negros, mestiços e brancos – que descrevem itinerários mais sinuosos na cidade do que a Rua 23, a 5ª Avenida ou os corredores do poder – precisassem de uma confirmação brasileira, caribenha ou norte-americana para existir em meio aos racismos cubanos.

Moore é certeiro, porque conseguiu articular a sensibilidade das melhores e mais autorizadas vozes para chamar a atenção sobre um dos problemas mais complexos a se resolver, a fim de se completar, assim, o projeto da nação cubana.

Muitos cidadãos cubanos, negros, mestiços e brancos agradecem a Moore por sua reconhecida perseverança. Mas para o Granma, a pergunta permanece: Cuba é um país racista?



*Filósofo, historiador e antropólogo

Um comentário:

  1. resposta: sim. basta conversar com um cubano e ele te respondo como Grande Otelo: se não existisse você não estaria perguntando...

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